O DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL POR FUNCIONÁRIO PÚBLICO

 

  IVAN LIRA DE CARVALHO    

  Juiz Federal e

  Professor do Curso de Direito da UFRN

 

SUMÁRIOI – Explicação Inicial.  II – O Descumprimento de Ordem Judicial.  III – O Princípio da Legalidade e a Tipicidade.  IV – Sobre a Desobediência.  V – Delito de Resistência?  VI – A Prevaricação.  VII – Abuso de Autoridade.  VIII – Algumas Conclusões e Sugestões.

 

                               I  – EXPLICAÇÃO INICIAL

      A curiosa e preocupante obstinação de determinados setores da administração pública brasileira em burlar os ditames da Constituição e da legislação infraconstitucional, em desfavor do cidadão comum, fez com que a população se armasse do mais forte instrumento existente nas sociedades democráticas e pelo menos teoricamente tuteladas pelo Estado de Direito: a ação judicial.

      Assim, quando da formulação de planos econômicos que malferiram o direito de propriedade detido sobre os ativos financeiros, foi ao Judiciário que o particular recorreu, mirando o desembargo das suas reservas pecuniárias. Quando a Previdência Social quedou-se omissa em pagar os benefícios da sua alçada, na integralidade de pelo menos um salário mínimo, foi na Justiça Federal que os beneficiários foram depositar a querela, objetivando o respeito do que dita a Constituição Federal, art. 201, § 5º. Igualmente foi ao Poder Judiciário que os servidores públicos recorreram quando sentiram que os seus vencimentos estavam sendo pagos em descompasso com o crescimento inflacionário experimentado pela economia nacional.

      Os poucos exemplos acima destacados, hauridos de um universo de largas dimensões, dão mostra de como tem sido volumosa a atuação da Justiça em socorro dos que a ela pedem proteção contra as iniqüidades do Estado. E em conseqüência, é possível aferir-se os dissabores que são enfrentados pelos magistrados, nos mais distintos graus, quando defrontados com a recusa dos agentes públicos em dar cumprimento às determinações judiciais. Se cerca de 83% da população brasileira não crê na Justiça, consoante pesquisa divulgada em 1993 por grande revista de circulação nacional, exatamente por conta da morosidade desta e pela ineficácia das suas decisões, mais agravado ainda fica o quadro, quando a prestação da tutela jurisdicional é providenciada em lapso temporal relativamente curto, mas deixa de ter efetividade por recusa da administração pública em a ela dar cumprimento. Qual a posição que deve ser adotada pelo Judiciário quando encarar tal situação?

      Em busca de uma resposta para a indagação acima formulada é que se procura dar forma de ensaio às presentes idéias. Se delas não exsurge uma solução, decerto aflora pelo menos uma contribuição, útil tanto aos Juízes como aos particulares, e até mesmo à administração pública, que disporá de elementos para pautar a sua conduta vindoura, evitando transtornos àqueles que verdadeiramente estipendiam o seu funcionamento.

            II  – O DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL

      O questionamento primário  sobre o qual deve ser debruçada a presente análise, diz respeito à natureza do comportamento configurador do descumprimento de ordem emanada judicialmente, por parte de funcionário público ou de quem a este for equiparado para os excogitados fins. Será uma mera desatenção processual, punível de acordo com as regras da codificação de ritos? Ou configurará um ilícito administrativo, sujeito às sanções destinadas à repreensão de tais ocorrências? Ou será, deveras, uma infração penal?

      Decerto encontraremos encaixe para a desídia do funcionário público em todas as searas acima listadas. Procurarei, nos limites dos meus conhecimentos e da minha parca experiência de magistrado, analisar a questão sob a ótica penal, procurando enxergar onde melhor estará agasalhada a ação (ou a inação) do servidor.

 

        III  – O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E A TIPICIDADE

      Quando um magistrado expede uma ordem, a partir do que decidiu em um processo judicial, almeja que esta seja imediatamente cumprida, pois só assim ocorrerá a efetividade da tutela conferida. Ao instante em que o destinatário do mandado opõe recusa para atender ao que lhe foi ordenado, a primeira idéia que se tem é a de que aquele agente público malferiu uma parcela da soberania do Estado, e por isso merece ser punido. Como a aparente insolência exala gravidade, é buscada uma reprimenda igualmente forte, geralmente com a retribuição de uma penalidade, quiçá deambulatória. Esbarra esse animus puniendi na perquirição da tipicidade da conduta do funcionário, máxime em atenção ao princípio da legalidade, presente na Constituição Federal (art. 5º, XXXIX) e no Código Penal, art. 1º, conforme será visto adiante.

                  IV  – SOBRE A DESOBEDIÊNCIA

      A primeira figura delitiva à qual se procura subsumir o agir do funcionário público que recusa cumprimento a ordem judicial é a da desobediência, antevista no art. 330 do C. Penal. Não são poucas as manifestações pretorianas assim estampadas: "DESOBEDIÊNCIA – ORDEM JUDICIAL – HC DENEGADO -A desobediência a uma ordem judicial, provinda de autoridade competente, configura crime, não permitindo, por isso mesmo, valer-se o infrator do `habeas corpus' para eximir-se ao seu cumprimento, por prefalada existência de coação ilegal ou abuso de poder."(STJ – Ac. unân. da 5ª T., publi. em 29.06.92 – HC 1.162-0-GO – Rel. Min. FLAQUER SCARTEZINNI, in JURISPRUDÊNCIA ADV/COAD, 1992, pág. 744, verbete 60317).

      Igualmente do STJ é o aresto que tem a seguinte ementa: "DESOBEDIÊNCIA – RECUSA AO CUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL -Aos Juízes e Tribunais é conferido o direito-dever de assegurar o cumprimento de suas decisões. Não fora assim, quedaria inerte a Justiça diante da vontade dos que se opusessem às suas decisões, que resultariam inócuas em prejuízo da sociedade. E já não adiantaria ao indivíduo recorrer ao Judiciário para garantia de seus direitos. Por isso mesmo, entende-se não configurar violação do `jus libertatis' a exigência de cumprimento de decisão judicial validamente exarada nos autos de processo. E a recusa em acatar a decisão judicial caracteriza, em tese, o crime de desobediência." (STJ – Ac. unân. da 5ª T., publ. em 21.10.91, RHC 1.373-SP – Rel. Min. COSTA LIMA, in JURISPRUDÊNCIA ADV/COAD, 1992, pág. 232, verbete 58038).

      Ainda que de forma incidental, posto que decidindo matéria eminentemente processual penal, entendeu o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL da 5ª Região, por sua 2ª Turma, à unanimidade, que, se configurada a desobediência ao cumprimento de ordem judicial, em crime permanente, deve ser formalizada a prisão em flagrante enquanto durar a estabilidade delituosa (CPP, art. 203). Entretanto, se à prisão foi oferecido caráter intimidativo, com a fixação de prazo para cumprimento da ordem, "sob pena de prisão", fica descaracterizada a prisão em flagrante[1].

      Com a vênia merecida, os julgados acima citados, ao que parece, não tomaram em conta que a desobediência está encartada no Código Penal como um delito daqueles "praticados por particular contra a administração pública", já que integrante da Parte Especial, Título XI, Capítulo II. E sendo crime que só pode ser praticado pelo particular, não se pode afirmar seja ele perpetrado por funcionário público,  a menos que o agente estatal esteja despido dessa condição, agindo pois como um homem comum[2], como por exemplo quando não detém poderes ou competência administrativa para praticar ou deixar de praticar o ato reportado na decisão judicial.

      Importante frisar que mesmo aqueles que entendem ser possível o cometimento da desobediência por funcionário público, destacam que a prisão, por desatenção a ordem judicial, não está prevista na legislação nacional com força executiva, como ocorre aos inadimplentes de pensão alimentícia e aos depositários infiéis. Segundo tal corrente, se o funcionário público não dá cumprimento a ordem judicial, contra ele deverá ser lavrado o flagrante por crime de desobediência ou prevaricação ou, por igual razão, serem remetidas as peças informativas ao Ministério Público, para que este titularize a respectiva ação penal[3].

      Na mesma linha, e destacando a imprestabilidade do encarceramento ordenado por juiz do cível, decidiu o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que a prisão determinada "por Juiz Federal no exercício da jurisdição cível em precatória extraída de autos de ação de medida cautelar inominada para conversão de cruzados novos em cruzeiros" não prospera, já que falece "competência ao juízo cível para ordenar prisão por desobediência, na ausência de previsão legal. Hipótese que não se identifica com prisão por dívida alimentícia ou depositário infiel. Por outro lado, eventual prisão em flagrante, por crime de desobediência, admite a prestação de fiança, constituindo ilegalidade a negativa desta, em face do que dispõem a CF – art. 5º, LXVI – e o CPP – arts. 322 e segs"[4].

      Também concluindo não ser cometido ao próprio juiz que emite a ordem desatendida, prender o possível desobediente, entendeu o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL da 5ª Região que o magistrado "prolator da decisão, cujo descumprimento constituiria a conduta criminosa, não é a autoridade competente para presidir um auto de prisão em flagrante, e muito menos para determinar essa prisão.(…) A consumação da prisão, antes que haja uma decisão, no caso concreto, sobre a legalidade da ordem descumprida, é uma violência que não se pode admitir."[5]

      Interessante julgado do TRF da 4ª Região sinalizou a existência de uma espécie de "choque competencial" entre juízes que conheceram, cada qual na sua seara, da matéria atinente à pretensa desobediência em estudo, pois se "o juiz criminal competente rejeita a denúncia pelo crime de desobediência, é desarrazoado que o juiz do cível, aquele que emitiu a ordem descumprida, determine a prisão do insubmisso, porque inconciliáveis as idéias de que o juiz natural declare a inexistência do crime e de que outro reconheça sua prática em flagrante. Prevalência do ato judicial exarado no âmbito da competência própria. `Habeas Corpus' deferido."[6]

      Penso, conforme já adiantei linhas acima, que o funcionário público (sendo a expressão compreendida na lata dimensão do art. 327 do C. Penal) não comete o delito de desobediência, já que este é reservado para ter como sujeito ativo o particular. Trago, em abono ao meu entendimento, o apoio de respeitável corrente do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, capitaneada pelo Ministro VICENTE CERNICHIARO, emblematizada no julgamento do habeas corpus nº 1.351-6-DF, por ele relatado e assim ementado: "HC – CONSTITUCIONAL – PENAL – DESOBEDIÊNCIA – SUJEITO ATIVO – CONDUTA – OMISSÃO   -O conceito de funcionário público -para os efeitos penais- é definido no art. 327, do Código Penal. O INSS é autarquia federal. O delito -desobediência- tem o particular como sujeito ativo. O funcionário somente pratica esse delito caso a ordem desrespeitada não seja referente às suas funções. A omissão, ademais, só se caracteriza quando a pessoa não cumpre obrigação jurídica."[7]

      O TRF da 5ª Região, por sua Segunda Turma, reiteradamente entendeu que em sede de procedimento cível, partindo de dirigente da própria parte a recalcitrância no atender à ordem judicial, contra aquela deveriam ser adotadas as próprias medidas punitivas antevistas no Código de Processo Civil, posto que cominando-se "a uma das partes do processo, pelo não cumprimento de uma ordem judicial, uma pena processual – não falar nos autos (art. 601 do CPC)   e, não havendo cumulação entre esta sanção processual e a sanção penal, não há como falar-se na hipótese na perfeição do crime de desobediência. (…) Identificada no ato judicial atacado, coação ilegal – cumprimento do mandado citatório sob pena de prisão – concede-se a ordem para confirmar-se a liminar já deferida e por força da qual se expediu o competente salvo conduto."[8]

      Em outro decisum, sobre o mesmo tema, igual foi o entendimento do pré-falado Regional: "Não constando, diversamente do que ocorre no texto do artigo 362 do CPC, ressalva de cumulação com a sanção penal, não se cobra da parte no processo civil, responsabilidade por crime de desobediência, quando a mesma, mesmo imotivada ou ilegalmente se recusar a efetuar a exibição que lhe foi determinada  judicialmente aplicando-se-lhe, na hipótese, tão só – se o caso – a pena processual civil de que cuida o art. 359 do CPC (terem-se como verdadeiros os fatos que por meio de documento ou da coisa, a parte pretendia provar). Constitui-se, pois, em coação ilegal, a ordem judicial que determine a parte exibir em juízo, documento ou coisa, sob pena de prisão, pelo crime tipificado no art. 330 do Código Penal – desobediência."[9]

      Abrandando os rigores da lei penal, assentou o TRF da 5ª Região, em habeas corpus, que se o paciente "cumpriu a determinação judicial, em prazo razoável, não há porque se determinar a abertura de inquérito policial para apuração de crime de desobediência", uma vez que "a falta de comprovação material da ocorrência presumível do delito e indícios da sua autoria, constitui coação ilegal sanável via habeas corpus".[10]

 

                  V  – DELITO DE RESISTÊNCIA?

      Já foi cogitado que o agente público, ao deixar de dar cumprimento a ordem judicial, estaria cometendo o ilícito previsto no art. 329 do Código Penal. Acenam os defensores de tal subsunção com duas justificativas: o sujeito ativo é funcionário público e externa oposição ao cumprimento de ordem legalmente emanada.

      Na minha singela opinião, não medra tal entendimento, por entender impossível – conforme já alertei acima – que um delito previsto para ser praticado "por particular contra a administração pública em geral" (CP, arts. 328 a 337), tenha como sujeito ativo um funcionário público.

      Não é demais lembrar, por uma questão de razoabilidade, que dificilmente um funcionário público ocupante de cargo ou função que lhe permita cumprir ou ordenar o cumprimento de uma ordem judicial, atuará com violência ou ameaça dirigidas ao oficial de justiça que portará a ordem emanada do magistrado. E se tais circunstâncias não timbram o agir do pretenso delinqüente, desaparece a tipicidade da resistência, conforme entendeu o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL da 5ª Região[11].

                      VI  – A PREVARICAÇÃO

      Ao estudar o delito de desobediência, mormente pela sua angularização ativa, reclama JULIO FABBRINI MIRABETE[12], com absoluta razão, seja este praticado por particular, sob pena de atipicidade da ocorrência. E diz: "Não se configura o citado ilícito se tanto o autor da ordem como o agente se achavam no exercício da função quando da sua ocorrência (RT 395/315, 487/289; RF 276/249; JTACrSP 12/96). Neste caso, o fato poderá caracterizar, eventualmente, o crime de prevaricação (art. 319)."

      Pois é olhando a sugestão de MIRABETE que será desenvolvido o presente tópico do estudo.

      É a prevaricação um delito atribuído ao agente público, quando este retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou mesmo vem a praticá-lo contra expressa disposição legal, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (CP, art. 319).

      Resta a pergunta: quando um funcionário público (CP, art. 327 e § 1º) descumpre uma determinação judicial, pratica prevaricação?

      O que primeiro deve ser sindicado é se o pretenso sujeito ativo (o funcionário) tinha atribuições e poderes para dar seguimento à ordem judicial. Ou seja, deve ser aferido se o ato praticado, omitido ou retardado está na esfera funcional do servidor. Em sendo positiva a resposta, deve prosseguir a análise da configuração dos demais componentes do standard delituoso em baila.

      De relevância é também, para o delineamento da prevaricação, que o comportamento (comissivo ou omissivo) do funcionário público seja indevido. Assim, deverá o servidor público ter agido de forma ilegal, injusta ou injustificada, conforme leciona MIRABETE[13].

      Para mim, o aspecto mais importante a ser enxergado na tipificação da prevaricação voltada contra ordem judicial, diz respeito ao elemento subjetivo do delito, que, no dizer das escolas vetustas, é o dolo específico, marcado pelo intuito de satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

      É verdade que ao instante em que o funcionário federal deixa de atender a uma determinação judicial, está ele, de plano, afrontando a Lei 8.112[14], que em seu art. 116, inciso IV, lista entre os deveres do servidor "cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais", proibindo-o também de "opor resistência injustificada ao andamento de documento e processo ou execução de serviço" (art. 117, IV). Não menos verdadeiro é, também, que, para violar a regra do art. 319 do CP, é imperioso que a desatenção tenha ocorrido visando à satisfação de interesse ou sentimento particular.

      Busco em MIRABETE a explicação para ditos elementos subjetivos: "Interesse pessoal é a relação de reciprocidade entre um indivíduo e o objeto que corresponde a determinada necessidade daquele; é um estado anímico em relação a qualquer fato ou objeto, seja patrimonial, material ou moral. (…) Sentimento é um estado afetivo ou emocional, decorrente, pois, de uma paixão ou emoção (amor, ódio, piedade, avareza, cupidez, despeito, desejo de vingança, subserviência, animosidade, simpatia, benevolência, caridade, etc.)".[15] E exemplifica o renomado penalista, como espécie de prevaricação por sentimento, a praticada por "delegado de polícia que deixa de cumprir ordem judicial com relação a recolhimento em cela especial, permitindo que investigador a ele submetido tivesse livre trânsito pelas dependências da delegacia, facilitando-lhe com isso a fuga (RT 445/348)".

      Na análise da caracterização da prevaricação que se estuda, deve o juiz apurar cada vez mais o seu equilíbrio, no intuito de aferir se realmente o funcionário agiu objetivando a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Dos dois requisitos subjetivos, o primeiro oferece melhores condições de constatação, como ocorre, por exemplo, no caso de dirigente de repartição pública que retarda o cumprimento de ordem judicial que suspende a integração de vantagem financeira aos vencimentos dos funcionários sob o seu comando – quiçá dos seus próprios ganhos.

      Já com referência ao sentimento pessoal, parece acontecer, na maioria dos casos, uma subserviência intolerável dos funcionários para com os seus superiores, em muito transcendendo o respeito à hierarquia recomendado pelo pré-citado art. 116, IV, da Lei 8.112/90. Noutros casos, são constatadas manifestações explícitas de prepotência, do tipo "quem manda aqui sou eu!", exigindo uma reprimenda eficaz ao restabelecimento da primazia do interesse público no trato da matéria administrativa.

      Não é demais relembrar que a ação (ou a inação) do possível prevaricador deve ser evidentemente gizada de interesse ou sentimento pessoal, sendo "inépta (sic) a denúncia que não especifica o sentimento pessoal do autor" conforme entendimento do TRF da 4ª Região[16] e do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL[17].

      O tão festejado MIRABETE ressalta a abrangência do art. 319 do CP, ao explicar que este "inclui o ato administrativo, o legislativo e o judicial"[18], tendo nessa linha entendido o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA que a recusa "ao cumprimento de ordem judicial constitui fato do qual emerge a dedução necessária de que o agente assim procede para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, pois não há, em princípio, outra explicação para esse comportamento. Não pode estar isento de dolo aquele que não cumprir a ordem do magistrado."[19]

                   VII  – ABUSO DE AUTORIDADE

      Há quem pense, com certa lógica, que ao instante em que deixa de atender ao que ordenado por um juiz, o funcionário público labora com abuso de autoridade ou abuso de poder[20], posto que pratica ato lesivo da honra ou do patrimônio da pessoa física ou jurídica beneficiária da decisão judicial, a teor do disposto no  art. 4º, "h", da Lei 4.898/65.

      Por si só, não vejo como possa subsumir a recalcitrância do servidor ao tipo legal acima invocado. Acho-o muito genérico para os fins de encaixar o comportamento do insurreto. Em atenção ao princípio da legalidade e aos ensinamentos acerca da tipicidade penal, não entendo – pura e simplesmente – como abusador da autoridade ou do poder, aquele que recusa dar cumprimento a uma ordem judicial.

      Ademais, não se pode olvidar que a mens legis da Lei 4.898/65 foi a de armar o cidadão contra os desmandos dos ocupantes do poder, reproduzindo, inclusive, nos seus artigos 3º e 4º, direitos já asseverados ao homem nas diversas declarações políticas, tais como a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia (1776), a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948). Na opinião de GILBERTO PASSOS DE FREITAS e VLADIMIR PASSOS DE FREITAS, "todos os princípios estabelecidos em tais Declarações e que hoje fazem parte de quase todas as Constituições existentes nos mais diversos países, são reproduzidos na Lei de Abuso de Autoridade. Isso significa que os tipos estabelecidos nesta lei especial são, pura e simplesmente, a repetição das declarações de direitos do homem. É bem por isso que ela protege a liberdade de locomoção, o sigilo de correspondência, a inviolabilidade de domicílio, a incolumidade física e outros tantos valores consagrados internacionalmente. (…) Verifica-se, pois, que a Lei 4.898, de 1965, tem a finalidade de prevenir os abusos de autoridade, dando a quem quer que seja o meio necessário para fazer valer os direitos e garantias previstos na Constituição, sendo um instrumento da mais alta importância na defesa dos direitos do homem."[21]

      Não se desconhece que muitos doutrinadores, nacionais[22] e estrangeiros,[23] atribuem a sujeição passiva do abuso oficial, bipartidamente, ao próprio Estado e ao particular que sofre os reflexos do ato. Entretanto, insisto na idéia de que a tutela imediata objetivada pela Lei 4.898 é a dos interesses e direitos do particular, protegendo  mediatamente os direitos e interesses da Administração Pública. Daí não reconhecer – pelo menos em tese – a pretendida utilidade da figura criminosa do abuso de poder ou de autoridade, para através dela combater a resistência de funcionário público ao cumprimento de ordem judicial.

      Sem qualquer embargo da posição acima esgrimida, entendo que comete o ilícito de abuso de autoridade, o agente público que pratica, sponte sua, quaisquer das ações elencadas na Lei 4.898, art. 4º. Evidentemente, tais ações podem ser cometidas pelo agente público, sem que para tanto tenha sido provocado ou recebido ordens de autoridade judiciária competente. Portanto, o delito terá como sujeito passivo o cidadão, e não a autoridade judiciária.

             VIII  – ALGUMAS CONCLUSÕES E SUGESTÕES

1ª)   O presente estudo tem como objetivo principal ofertar uma contribuição, útil tanto aos Juízes como aos particulares, e até mesmo à administração pública, que disporá de elementos para pautar a sua conduta vindoura, evitando transtornos àqueles que verdadeiramente estipendiam o seu funcionamento.

2ª)   A desídia do funcionário público, em dar cumprimento às determinações judiciais, foi aqui analisada apenas sob a ótica do Direito Penal, sendo certo que tal comportamento poderá sofrer estudo mais apurado em outros campos da ciência jurídica, principalmente no Direito Processual, no Direito Civil e no Direito Administrativo.

3ª)   Para a configuração criminal do comportamento do servidor público omisso em cumprir ordem judicial, deve ser tomado em conta, basilarmente, o princípio da legalidade, insculpido na CF, art. 5º, XXXIX e no CP, art. 1º.

4ª)   Existe uma inescondível preferência em caracterizar o comportamento do funcionário que deixa de cumprir ordem judicial como desobediência. Entretanto, não se pode descurar que a desobediência está encartada no Código Penal como um delito daqueles "praticados por particular contra a administração pública", já que integrante da Parte Especial, Título XI, Capítulo II. E sendo crime que só pode ser praticado pelo particular, não se pode afirmar seja ele perpetrado por funcionário público,  a menos que o agente estatal esteja despido dessa condição.

5ª)   Afirma, preocupado, FÁBIO BITTENCOURT DA ROSA: "Se a desobediência a ordem judicial não tipifica o crime do artigo 330 do Código Penal, quando praticado por servidor público, outra solução tem que ser estabelecida em nível legislativo."[24] E tem razão o juiz gaúcho em clamar por um remédio que sirva a coartar procedimentos como o acima referido, já que a prisão por desatenção a ordem judicial não está prevista na legislação nacional com força executiva, como ocorre aos inadimplentes de pensão alimentícia e aos depositários infiéis.

6ª)   O agente público, ao deixar de cumprir uma determinação judicial, não comete o delito de resistência (CP, art. 329), já que – consoante já afirmado supra – é impossível que um delito previsto para ser praticado "por particular contra a administração pública em geral" (CP, arts. 328 a 337), tenha como sujeito ativo um funcionário público. Ademais, não é razoável que um funcionário público ocupante de cargo ou função que lhe permita cumprir ou ordenar o cumprimento de uma ordem judicial, atue com violência ou ameaça contra o oficial de justiça que portará a ordem emanada do magistrado. E sem violência ou ameaça, não há que falar-se em resistência.

7ª)   A prevaricação é delito atribuído ao agente público, quando este retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou mesmo vem a praticá-lo contra expressa disposição legal, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (CP, art. 319). No perquirir da configuração de tal delito, deve o juiz analisar, com profundidade, se realmente o funcionário agiu objetivando a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Se ausentes quaisquer destas motivações, ausente está também a prevaricação.

8ª)   Não pratica abuso de autoridade (ou abuso de poder), o servidor público que recusa cumprimento a uma ordem judicial. Pode, entretanto, cometer o delito previsto na Lei 4.898/65, se pratica quaisquer das ações previstas no art. 4º do mencionado diploma, tendo como sujeito passivo o próprio cidadão atingido pelo incorreto comportamento do agente do Estado; não figurará no pólo passivo o Estado, por sua atividade jurisdicional.

 


  

[1] HC 172/92-AL, publicado em 03.07.92, Rel. Juiz PETRÚCIO FERREIRA, in JURISPRUDÊNCIA ADV/COAD, 1992, pág. 615, verbete 59763.

[2] Conferir JULIO F. MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2ª edição, vol. 3, S. Paulo. Atlas, 1991, págs. 349 e seguintes; PAULO JOSÉ DA COSTA JR, Curso de Direito Penal, 2ª edição, vol. 3, S. Paulo, Saraiva, 1993, págs. 214 e seguintes.

[3] TRF da 4ª Região, Ac. unân. da 1ª Turma, publ. em  15-04-92, HC 92.04.05839-0-RS, Rel. Juiz VLADIMIR FREITAS, in JURISPRUDÊNCIA ADV/COAD, 1992, pág. 375, verbete 58732.

[4] Acórdão unânime da 5ª Turma, publ. em 17-08-92, REsp 20.021-9-GO, Rel. Min. Assis Toledo, in JURISPRUDÊNCIA ADV/COAD, 1992, pág.760, verbete 60390.

[5] HC nº 235/92-PE, julgado em 01.10.92, mv, Rel. Juiz RIDALVO COSTA e Relator para o acórdão Juiz HUGO MACHADO, REPERTÓRIO DE JURISPRUDÊNCIA DO TRF 5ª REGIÃO – Direito Penal e Processual Penal, ano 2, nº 1, tomo 2, 1994, pág. 497.

[6] Acórdão unânime, 1ª Turma, publ. em 20-05-92, Rel. Juiz ARI PARGENDLER, in JURISPRUDÊNCIA ADV/COAD, 1992, pág. 584, verbete 59626.

[7] Acórdão da 6ª Turma, unânime, julgado em 04.8.92, JSTJ e TRF, Lex, vol. 39, pág. 298.

[8] Habeas Corpus nº 277/93-PB, julgado em 20.04.93, unân., Rel. Juiz PETRÚCIO FERREIRA, REPERTÓRIO DE JURISPRUDÊNCIA DO TRF da 5ª Região, Direito Penal e Processual Penal, ano 2, nº 1, tomo 1, Recife, 1994, pág. 193.

[9] Habeas Corpus nº 62/90-RN, 2ª Turma, julgado em 07.8.90, unân., Rel. Juiz PETRÚCIO FERREIRA, REPERTÓRIO…, opus, pág. 195.

[10] Habeas Corpus nº 75/90-AL, 2ª Turma, julgado em 04-09-90, por unanimidade, Relator Juiz JOSÉ DELGADO,  REPERTÓRIO…, opus, pág. 196.

[11 ]Apelação Criminal nº 576/92-RN, Primeira Turma, por unanimidade, Rel. Juiz HUGO MACHADO, REPERTÓRIO…, opus, ano 1, nº 1, tomo 1, pág. 192.

[12] ob. op. cit., pág. 350.

[13] opus, pág. 318.

[14] Em se tratando de servidor público municipal ou estadual, é de ser considerado como parâmetro do seu comportamento o disposto no estatutos funcionais dos respectivos níveis administrativos.

[15] ob. op. cit., pág. 319.

[16] Ac. unân. da 3ª Turma, public. em 02.09.91, Rec. Crim. 90.04.23171-4-PR, Rel. Juiz SILVIO DOBROWÓLSKI, Jurisprudência ADV/COAD, 1992, pág. 151, verbete 57585.

[17] RTJ 111/288.

[18] ob. cit., pág. 318.

[19] Rel. Des. MAY FILHO, in REVISTA DOS TRIBUNAIS, vol. 527, pág. 408.

[20] A terminologia, entre nós, é bastante questionada. Para uns, é certo dizer abuso de poder; para outros, o correto é abuso de autoridade. Tem a palavra DAMÁSIO E. DE JESUS: "De ver-se que, sob o ponto de vista jurídico-penal, os crimes definidos na Lei n. 4.898/65 não receberam nomem juris apropriado. Não se trata de abuso de autoridade, mas de abuso de poder. Em face de nossa legislação penal, não se confunde o abuso de poder com o de autoridade. O abuso de poder é o uso fora dos limites correspondentes a todo poder ou autoridade, o seu exercício excessivo e ilegítimo. Na hipótese de abuso de autoridade, cuida-se de seu uso ilegítimo no âmbito das relações privadas; na de abuso de poder, o agente deve possuir cargo ou ofício público."(DIREITO PENAL, 4º volume, 4ª edição, S. Paulo, Saraiva, 1993, pág. 283).

[21] ABUSO DE AUTORIDADE, 4ª edição, S. Paulo, RT, 1991, págs. 13, 14 e 16.

[22] v.g. DAMÁSIO E. DE JESUS, ob. cit., pág.285.

[23 ]MANZINI (Trattato di Diritto Penale Italiano, vol. V., Unione Tipografico, Editrice Torinense, Torino, Itália, 1950, 231) e SOLER (Derecho Penal Argentino, tomo V, Tipografia Ed. Argentina, Buenos Aires, Argentina, 1951, 154).

[24] JUDICIÁRIO: DIAGNÓSTICO DA CRISE, in Anais do Encontro Nacional de Magistrados da JF, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasília, 1993.

 

Fonte: PREVARIC [ARTIGO] – JFRN

(*) Ilustrações fotográficas e imagens nossas

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Postado por Gilvan Vanderlei
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