MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Parecer nº 35661/2020 – SC
Mandado de Segurança nº 25.962 – DF
Impetrante : Zoroastro de Souza
Impetrado : Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
Relator : Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO – Primeira Seção.

 

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO DE REVISÃO DE ANISTIA POLÍTICA.

I – A INTIMAÇÃO EFETUADA CARECE DOS FATOS E FUNDAMENTOS PERTINENTES, OS QUAIS DEVEM DESCREVER AS RAZÕES PELAS QUAIS HOUVE A INSTAURAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE REVISÃO DA ANISTIA EM DESFAVOR DO IMPETRANTE.

II – OS ATOS QUE NEGUEM, LIMITEM OU AFETEM DIREITOS E INTERESSES, COMO OCORRE NO CASO EM ANÁLISE, DEVEM SER NECESSARIAMENTE MOTIVADOS, COM INDICAÇÃO DOS FATOS E FUNDAMENTOS JURÍDICOS, DE FORMA EXPLÍCITA, CLARA E CONGRUENTE. ART. 50, I, § 1º, DA LEI Nº 9.784/99.

III – DA FORMA COMO PROCEDEU, A AUTORIDADE COATORA VIOLOU O DIREITO LÍQUIDO E CERTO DE DEFESA DO IMPETRANTE. ARTS. 27, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 9.784/99 E 5º, LV, DA CF/88.

IV – DIREITO DE O ADMINISTRADO TER CIÊNCIA DOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS EM QUE TENHA A CONDIÇÃO DE INTERESSADO, TER VISTA DOS AUTOS, OBTER CÓPIAS DE DOCUMENTOS NELES CONTIDOS E CONHECER AS DECISÕES PROFERIDAS. ART. 3º, II, DA LEI Nº 9.784/99. PRINCÍPIO DA ACESSIBILIDADE AOS ELEMENTOS DO EXPEDIENTE.

V – A INTIMAÇÃO OBJETO DO MANDAMUS RESTA INVÁLIDA, DE MODO QUE O PRAZO PARA A APRESENTAÇÃO DAS RAZÕES DE DEFESA DEVE SER REABERTO, RESTITUINDO-SE NA INTEGRALIDADE.

VI – PARECER PELA PARCIAL CONCESSÃO DA SEGURANÇA.

 

Excelentíssimo Senhor Ministro Relator,

Trata-se de mandado de segurança, impetrado por Zoroastro de Souza, em face de ato da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que, via Comissão de Anistia, determinou a intimação do impetrante, sem qualquer fundamentação, para apresentar defesa em procedimento administrativo de revisão de sua anistia política.

Afirma que: a Comissão da Anistia está, pois, obrigando o Impetrante a fazer uma defesa ‘às cegas’, quando é dever da Administração Pública a ‘observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados’ (e-stj, fl. 9).

Assim, aduz que a determinação da autoridade coatora viola os princípios da ampla defesa e contraditório, implicando na nulidade do processo administrativo desde o seu nascedouro.

Acrescenta que o anistiado também não pode se defender em razão de não ter sido publicado, pelo Supremo Tribunal Federal, o acórdão no RE 817.338/DF, julgado cujo conteúdo embasa a pretensão anulatória objeto do processo administrativo.

Assim, requer, em caráter liminar, que a autoridade coatora suspenda o processo administrativo de revisão/anulação da Portaria Anistiadora do Impetrante, até decisão de mérito no presente mandamus, e que, ao final, seja concedida a segurança, para reconhecer a violação do devido processo legal, anulando-se o processo administrativo de revisão da anistia.

Em decisão de fls. 33/34 (e-stj), esse e. Ministro Relator indeferiu o pedido de liminar.

É o relatório. Passo a opinar.

Como se vê, o ato apontado como coator, constante às fl. 22 (e-stj), consubstancia-se na intimação do impetrante para apresentar resposta no procedimento de revisão de anistia instaurado em seu desfavor.

Acerca da intimação e sua função no processo administrativo, ensina, José dos Santos Carvalho Filho1, que:

“Em virtude do objeto das intimações, que é o de propiciar a ciência da prática de determinado ato a quem dele deva conhecer, pode dizer-se que se destinam ao intercâmbio processual.

(…)

Dentro do contexto da disciplina do processo administrativo, as intimações desempenham importante papel para os interessados, de modo que tanto para cientificá-los de atos praticados como para instá-los à prática de algum ato, possivelmente de seu próprio interesse, há inegavelmente relação de causa e efeito com o princípio do contraditório e da ampla defesa.

Sem tais garantias, os interessados não poderiam exercer, de toda a sua plenitude, a defesa de seus interesses e oferecer, quando necessário, elementos de contrariedade em relação aos fatos e afirmações deduzidos no processo”.

Assim, referido ato de comunicação processual viabiliza a participação do interessado no processo administrativo, em obediência ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

Os elementos da intimação, elencados no parágrafo primeiro do art. 26 da Lei nº 9.784/99 são requisitos de validade do ato. Destarte, o descumprimento de algum deles provoca a nulidade da intimação e dos atos subsequentes que dela decorram, conforme preconiza o art. 26, § 5º, primeira parte da mesma lei2.

Confira-se o teor do referido dispositivo legal:

“Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.

§ 1º A intimação deverá conter:

I – identificação do intimado e nome do órgão ou entidade administrativa;

II – finalidade da intimação;

III – data, hora e local em que deve comparecer;

IV – se o intimado deve comparecer pessoalmente, ou fazer-se representar;

V – informação da continuidade do processo independentemente do seu comparecimento;

VI – indicação dos fatos e fundamentos legais pertinentes.

(…).”

Na hipótese em apreço, o ato impugnado de intimação estabelece o prazo de dez dias, nos termos da Lei nº 9.784/1999, para que o impetrante apresente suas razões de defesa, pessoalmente ou pelo correio, no procedimento de revisão da anistia que lhe foi concedida, nos termos da Portaria nº 3.076/2019.

Para além dos autos, observa-se que a mencionada Portaria, com base no que fora decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 817.338, sob o rito da Repercussão Geral3, determinou a realização de procedimento de revisão das anistias concedidas com fundamento na Portaria nº 1.104/GM-3/1964, do Ministério da Aeronáutica, para averiguação do cumprimento dos requisitos legais e constitucionais para a concessão de anistia.

Ora, nitidamente a intimação carece dos fatos e fundamentos legais pertinentes, os quais devem descrever as razões pelas quais houve a instauração do procedimento de revisão da anistia outrora concedida ao impetrante, considerando, sobretudo, a quem se destina o ato: idoso, com setenta e oito anos de idade, beneficiário da gratuidade da justiça, residente e domiciliado em Nova Iguaçu/RJ, anistiado político desde dezembro de 2002.

As peculiares condições do impetrante dificultam ou mesmo impossibilitam que ele possa, no exíguo prazo de dez dias, comparecer à repartição pública competente – Comissão de Anistia/Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – para inteirar-se dos fatos que suscitaram a revisão da sua anistia, ou que possa nomear um advogado para tanto.

Impende notar que os fatos e fundamentos legais revelam a motivação do ato administrativo (intimação). E, consoante o art. 50, I, da Lei nº 9.784/994, os atos que neguem, limitem ou afetem direitos e interesses, como ocorre no caso em análise, devem ser necessariamente motivados, com indicação dos fatos e fundamentos jurídicos, de forma explícita, clara e congruente (art. 50, § 1º, da mesma lei5).

Da forma como procedeu, a autoridade coatora acabou por violar o direito líquido e certo de defesa do impetrante, em contrariedade ao art. 27, parágrafo único, da Lei nº 9.784/99, que garante o direito de ampla defesa ao interessado6, e ao art. 5º, LV, da Constituição Federal de 19887, que assegura aos litigantes, em processo judicial e administrativo, o contraditório, a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Acrescente-se que, de acordo com a jurisprudência desse e. Superior Tribunal de Justiça, o reexame das anistias concedidas constitui legítima manifestação do poder de autotutela da Administração, sendo que: “a própria Portaria Interministerial 134 evidencia que, tanto na revisão, quanto em eventual procedimento de cassação das anistias, haverá oportunidade de manifestação dos interessados, permitindo o contraditório e a ampla defesa”8.

Além da vulneração aos princípios mencionados, a intimação vai de encontro ao direito do administrado “a ter ciência da tramitação dos processos administrativos da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas”, conforme reza o art. 3º, II, da Lei nº 9.784/1999.

Esse direito do administrado é denominado, por Celso Antônio Bandeira de Mello9, como princípio da acessibilidade aos elementos do expediente, nos seguintes termos:

“Princípio da acessibilidade aos elementos do expediente. Isto significa que à parte deve ser facultado o exame de toda a documentação constante dos autos, ou seja, na expressão dos autores hispânicos, de todos os 'antecedentes' da questão a ser resolvida. É o que, entre nós, se designa como o 'direito de vista', e que há de ser de vista completa, sem cerceios.

Estranhamente, existe, entre nós, uma tradição de considerar secretos os pareceres. Entende-se, absurdamente, que devem permanecer ocultos quando favoráveis à pretensão do administrado. Nisto se revela uma compreensão distorcida das finalidades da Administração e se ofende o princípio da lealdade e boa-fé, o qual, sobre ser princípio geral de Direito, apresenta particular relevo na esfera das relações administrativas, como bem acentuou o precitado Jesús Gonzáles Perez em preciosa monografia sobre o tema”.

No caso em tela, o administrado foi claramente tolhido desse direito de vista completa dos autos, dada a concessão do diminuto prazo para a apresentação de defesa, por meio de intimação precariamente instruída.

Enfim, seja em razão da falta de motivação, seja em decorrência da violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da acessibilidade aos elementos do expediente, a intimação objeto do mandamus resta inválida, de modo que o prazo para a apresentação das razões de defesa deve ser reaberto e restituído na integralidade, após a publicação do acórdão no RE 817.338/DF, pelo Supremo Tribunal Federal.

Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal pela parcial concessão da segurança, a fim de que haja a anulação da intimação impugnada e dos atos subsequentes, no procedimento administrativo de revisão da anistia política, instaurado em face do impetrante, a fim de que outra seja expedida, contendo os fatos e fundamentos que embasam a pretendida revisão.

Brasília, 24 de abril de 2020.

SANDRA CUREAU
Subprocuradora-Geral da República

 

1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pg. 172/173.

2 Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.
(…)
§ 5º As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.

3 A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: “No exercício de seu poder de autotutela, poderá a administração pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria 1.104/1964 quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas recebidas”.

4 “Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

(…)”

5 “Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

(…)

§ 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato”.

6 Art. 27. O desatendimento da intimação não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia a direito pelo administrado.

Parágrafo único. No prosseguimento do processo, será garantido direito de ampla defesa ao interessado.

7 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

8 MS 18.124/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 24/09/2013.

9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, pg. 511.

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MS nº 25.962-DF – Decisão Monocrática

Parecer nº 35661/2020 – SC 

 

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MAX DE OLIVEIRA LEITE.
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
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Postado por Gilvan VANDERLEI
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
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