Enviado em 27/10/2011 às 22:47

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Comentando o nosso Post “Perguntas sem respostas, até agora!… ” a vítima da Portaria 1.104GM3/64, o ex-S1 da FAB –  JORGE RAIMUNDO DOS SANTOS disse:

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Se são insustentáveis os dois argumentos contraditórios utilizados para invalidar que as palavras corretas que descrevem o que acontece atualmente entre nós é a indicação à amnésia sistemática a respeito de crimes de um Estado ilegal, então podemos abordar o último problema e perguntar: Seria tal amnésia o preço doloroso exigido para a estabilidade democrática?

Como mostra o exemplo bíblico da mulher de Ló, aqueles que olham demais para trás não correriam o risco de se transformarem em estátuas de sal?

Esta pergunta merece duas respostas. Uma “regional” e outra “estrutural”.

A resposta “regional” consiste em simplesmente lembrar que nossa democracia não é estável nem progride em direção ao aperfeiçoamento. Ao contrário, ela tropeça nos mesmos problemas e é incapaz de superar os impasses, que a atormentam há 25 anos.

Não vivemos em um período de estabilidade democrática. Vivemos em período de desagregação normativa com suspensão de dispositivos legais devido à interferência de interesses econômicos no Estado (vide caso Daniel Dantas), Bloqueio da capacidade de participação popular nos processos de gestão do Estado (já que tal participação se reduz à construção periódica de conscientes eleitorais em eleições nas quais todos os partidos vencedores se viabilizam financeiramente por meio de expedientes fora da lei), denúncias sucessivas de “mar de lama” desde a primeira eleição presidencial e, por fim o fato aberrante de uma Constituição que vinte anos depois de ser promulgada, possui um conjunto inumerável de artigos de lei que simplesmente não vigoram, além de recebido mais de sessenta emendas – como se fosse questão de continuamente flexibilizaras leis a partir das conveniências do momento.

Vivemos em um país cujo primeiro presidente pós-ditadura sofreu um ‘impeachment’, o segundo presidente eleito comprou sua reeleição subornando deputados e cujo Procurador-Geral respondia pela alcunha nada simpática de “engavetador-geral”, e onde o terceiro continuou o mesmo tipo de relação com o Congresso e com os operadores econômicos. Há algo de obsceno em chamar tal situação de “consolidação da normalidade democrática”.

De qualquer forma, nada disso deveria nos impressionar, já que, por nunca se ter feito um tribunal contra a ditadura, o Brasil nunca disse claramente rechaçar as práticas político-administrativas típicas dos operadores de regimes totalitários como o brasileiro, um regime cínico por fazer questão de mostrar não levar a sério as leis que ele mesmo enunciava. Regime que era capaz de assinar tratados de defesa dos direitos humanos enquanto torturava e desaparecia com os corpos.

É da incapacidade de lidar com nosso passado que vem o caráter deteriorado da nossa democracia.

Levemos em conta uma das características mais decisivas da ditadura brasileira: sua legalidade aparente ou, para ser mais preciso, sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência.

Tínhamos eleições com direito a partido de oposição, editoras publicavam livros de Marx, Lenin, Celso Furtado, músicas de protesto, governo que assinava tratados internacionais contra a tortura, mas, no fundo sabíamos que tudo isto estava submetido à decisão arbitrária de um poder soberano que se colocava fora do ordenamento jurídico.

Quando era conveniente, as regras eleitorais eram modificados, os livros apreendidos, as músicas censuradas, alguém desparecia. Em suma, a lei era suspensa. Uma ditadura que se servia da legalidade para transformar seu poder soberano de suspender a lei, de designar terroristas, de assassinar opositores, em um arbítrio absolutamente traumático.

Pois neste tipo de situação, nunca se sabe quando se está fora da lei, já que o próprio poder faz questão de mostrar que pode embaralhar, a qualquer momento, direito e ausência de direito, dentro e fora da lei. O que nos demonstra como a verdadeira função da ditadura brasileira era gerir a generalização de uma situação de anomia que ele mesmo alimentava.

Por fim, vale a pena terminar insistindo em uma resposta “estrutural” aos arautos do partido da Amnésia. Ela consiste em lembrar que nenhum país conseguiu consolidar sua substância normativa sem acertar contas com os crimes de seu passado.

Se há algo que deveríamos aprender de uma vez por todas é: não há esquecimento quando sujeitos sentem-se violados por práticas sistemáticas de violência estatal e de bloqueio da liberdade socialmente reconhecida.

Se há algo que a história nos ensina é: os mortos nunca se calam. Aqueles cujos nomes o poder procurou anular sempre voltam com força irredutível dos espectros. Pois, como dizia Lacan, aquilo que é expulso do universo simbólico, retorna norea. Por mais que todos procurem se livrar se livrar dos mortos, matando-os uma segunda vez, matando-os com essa morte simbólica que consiste em dizer que a morte deles foi em vão, que seu destino é a vala comum da história, que seus nomes nada valem, que não merecem ser objetos de memória coletiva, os corpos retornam. Os nazistas descobriram isso, os militares argentinos e chilenos também.

Chegará o tempo em que o Brasil descobrirá. Pois não haverá perdão enquanto não houver reconhecimento do crime.

Essa suspensão do perdão talvez a única possibilidade para tentarmos construir uma verdadeira democracia, nos levará a cunhar um imperativo tão forte quanto aquele que o Século XX cunhou contra Auschwitz: “Impedir que os mortos sejam mortos uma segunda vez”.

Desde Antigona, esse é o limite que nos separa da simples barbárie.

Jorge Raimundo dos Santos
soljorge688@live.com

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Postado por Gilvan Vanderlei
Ex-Cabo da FAB – Vítima da Portaria 1.104GM3/64
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