Não há anistia que poupe torturadores perversos

Entre os países criadores dos chamados “anos de chumbo”, o Brasil é o único que ampara os responsáveis e os praticantes dos crimes comuns contra opositores da ditadura”.


Jânio de Freitas, FOLHA DE SÃO PAULO, 3 de agosto de 2008.


Entre perplexos e assustados os brasileiros, como eu, tomamos conhecimentos de dois fatos gravíssimos: primeiro, uma nota assinada pelo general Gilberto Barbosa de Figueiredo com os mesmos enunciados dos tristemente cognominados anos de chumbo; segundo, da realização de um “simpósio” reunindo os três clubes militares, com a presença de juristas por demais conhecidos.


Na nota, o general Figueiredo me surpreende particularmente ao se referir à “tortura SUPOSTAMENTE praticada por alguns militares”. A esta altura da minha vida, tantos anos já passados com a conseqüente renovação da tropa, é profundamente lamentável que um general respeitado como o presidente do Clube Militar ainda ponha dúvida sobre comprovada tortura que levou muitos à morte nos porões do DOI-CODI, do CENIMAR e do CISA. E até mesmo em locais clandestinos, longe do alcance dos próprios militares d’antão.


Toda a sociedade brasileira que viveu sob o signo do medo naqueles tétricos 20 anos sabia do que acontecia com quem ousasse contestar os usurpadores de um poder ilegal, que a ele chegaram com a derrubada do presidente constitucional e que nele permaneceram pela força dos tanques, numa balada tão malvada que até seus próprios aliados civis, como os governadores Carlos Lacerda e Ademar de Barros, passaram pelo cutelo que cortava as vidas dos mandatários.


Antes de defender torturadores – que nada tinham com a vida castrense e que mancharam como celerados doentios a honra de uma tropa tradicionalmente legalista – esperava dos militares de hoje exatamente oposto. Os mais interessados em separar o joio do trigo, em dizer a nós, indefesos civis, que tudo aquilo acontecia à margem das corporações, deveriam ser os chefes de hoje, como acontece com países que viveram tragédias exatamente iguais, como Argentina e Chile, cujos comandantes se colocaram ao lado da punição dos criminosos de Estado.


Argumento “débil” que “agride a inteligência dos brasileiros” é o que tenta encobrir a tortura praticada por agentes do Estado, pagos e armados pela cidadania, comparando-a a ações dos que se rebelaram contra o regime de arbítrio, de perseguições e abuso do poder.

Eu que o diga


Cito o meu próprio exemplo como corpo de delito de uma ditadura insana e interessada tão somente em prestar serviços ao sistema internacional.


Fui preso na madrugada do dia 27 de junho de 1969, quando exercia o cargo de Chefe da Redação desta mesma TRIBUNA DA IMPRENSA. Levado para a Ilha das Flores, fui submetido a sessões de tortura do dia 2 ao dia 16 de julho desse ano, sob a supervisão do capitão de mar e guerra Clemente José Monteiro Filho, com a participação de torturadores inveterados, como o Solimar, o “CIA” , o SPC Sérgio e o sargento Antunes.


O que é que eu fiz para ser torturado, mantido isolado na “cela vermelha” e num fétido banheiro? Nada. Apenas dirigia um jornal submetido ao fogo intenso dos esbirros da ditadura, que prenderam e confinaram Hélio Fernandes por mais de uma vez e ainda tiveram o atrevimento de explodir uma poderosa bomba nas suas oficinas, no dia 26 de março de 1981, crime que até hoje não teve a devida reparação do Estado.


Esses torturadores tresloucados, assassinos, estão a salvo do julgamento de uma história ainda muito mal contada?


Os oficiais das nossas Forças Armadas são preparadíssimos. É uma pena que poucos saibam disso e não os prestigie devidamente. Por isso, é preciso de uma vez por todas dizer que as execuções covardes produzidas por alguns débeis mentais não têm nada com uma tropa que também foi vítima naqueles anos, também foi ludibriada pela propaganda enganosa, também teve de medir suas palavras porque não sabia quem era informante da temida “comunidade de informações”.


Nada justifica a execução de um rebelde, depois de preso. A centenária convenção de Genebra já prevê isso. E todo mundo sabe que o capitão Carlos Lamarca foi executado depois de rendido, já doente e alquebrado, no sertão da Bahia. Isso aconteceu com muitos outros prisioneiros, como Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.


Ou o general Geisel nunca devia ter demitido o general Ednardo Dávila Mello do comandante do II Exército, depois do aparecimento de vítimas mortais das torturas nas suas dependências?

E os “desanistiados”?


O que lamento, isto sim, é que com essa polêmica, o Ministério da Justiça deixe de responder a suas obrigações com os perseguidos da ditadura, cujos processos estão sempre sujeitos a variadas interpretações.


Neste caso, a área militar foi a mais afetada. De um lado, a leitura da Lei 10.559/02 me leva à patética conclusão de que os oficiais perseguidos foram de fato “desanistiados”. Para chegar a essa conclusão, basta considerar a natureza de um ato de anistia.


Pelo certo, uma vez anistiado, esses oficiais passariam a integrar o quadro dos oficiais aposentados, sem qualquer diferença dos demais. No entanto, numa concessão aos nostálgicos da ditadura, a Lei abriu espaço para uma espécie de quadro de oficiais de segunda classe, que não gozam dos direitos dos seus semelhantes em várias situações, inclusive da pensão para a viúva.


Já os ex-cabos da Aeronáutica experimentaram o amargor do dito pelo não dito. Mais de quinhentos deles, depois de anistiados no governo FHC, com base em parecer incontestável, foram surpreendidos com uma nova interpretação provocada pelo ministro Márcio Thomaz Bastos. E perderam tudo o que já haviam ganho.


Aí, não dá para entender mesmo. Todos os ex-cabos foram atingidos pela Portaria 1104, baixada naqueles idos pelo ministro da Aeronáutica. Por esse ato, que se deu à revelia de um decreto presidencial que regulava o engajamento (e que o Exército cumpriu) a permanência de um cabo em serviço ficava a critério do comandante da base onde serviço.


Não há como esconder que isso permitiu o mais ostensivo exercício da coação e da injustiça. O cabo que se enquadrasse naquele ambiente discricionário, que fosse do agrado do comando, ficaria. Os outros, seriam automaticamente desengajados.


Finalmente, lamento também que os adversários do reparo devido tenham inoculado na opinião pública a idéia de que os anistiados são os novos “marajás”. Por mais de uma vez, a Comissão de Anistia divulgou os números reais das indenizações, que não têm preço, e, no entanto, pessoas de boa fé são enganadas pelos mesmos que querem proteger os torturadores.

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Pedro Porfirio

Quinta-feira, 7 de Agosto de 2008.

(*) Destaques e Ilustrações de GVLIMA – Administrador do Portal.